Autor: Tiago Sousa
A humanidade numa chávena de café
O problema do café consiste no facto de este terminar tão rápido, tendo em conta o pouco que é na diminuta chávena que o contém, saindo de um bar ou essência que tal: um espaço de fragmento físico entre a vigília, e o resto tísico de um mundo adormecido. No entanto, é interessante de notar que o não desejo eterno, pelo menos de uma forma inconsciente; não são essas as palavras que me saem quando falo desse armazém externo de cafeína, dessa poça abissal em que me escondo fundos os recônditos reflexos de uma mente perturbada.
Não digo “o problema consiste no facto de este café terminar”; e a diferença é enorme, pelo menos para um cérebro que a isso dedique um pouco mais do que alguns segundos. A problemática não reside no término, mas sim na efemeridade que é a existência corpórea do café, no interior da chávena, no exterior desse meu trato digestivo.
Quando olhamos para a vida, contudo, não somos tão modestos
Quando olhamos para a vida, contudo, não somos tão modestos; o instinto é dizer que não a desejamos tomar por terminada. Noutros tempos, o nosso desejo é terminá-la logo. Tornamo-nos de automático em sujeitos extremos, cujas ideias balançam de um lado para o outro num quase espasmo, poder-se-ia dizer, um instante de explosiva patogenicidade, tomado como saudável por nos ser a mais pura natureza. Por vezes reclamamos que esta passa demasiado depressa, e aí nos dirigimos a esse impulso que me conecta ao meu café. Note-se a enorme distância entre o desejar um retardado fim, e o não almejar um fim de todo.
Aí se distingue, talvez, entre o amor pela vida e a obsessão, algo doentia, que se pode ter para com a mesma. A essa deve estar associada, quase exclusivamente, uma intensa repulsa perante a ideia de uma inescapável morte. Há um equilíbrio, mas muitos se escondem do equilíbrio, como se este os iluminasse com demasiada luz desde logo pela manhã. Os olhos de rompante se cobrem nesse temor inerente — à luz, ao dia, à verdade, ao recomeço.
Não seria mais que o recomeçar da vida, e muitos tememos esse abrir de olhos, mas é um temor, algo impercetível. Muitos de nós encontramos mais facilidade em permanecer na cama, essa por vezes terna paralisia, quando o dia habita o seu começo, e não quando reina a noite. Adormecemos com dificuldade, e acordamos com igual dificuldade, como se tivéssemos adquirido com a experiência um certo gosto pelo coma, pela inconsciência, por esse temporário estado de um falecer.
As emoções passageiras
As emoções passageiras: são as que geram o extremo hábito de viver, ou o extremo âmbito de se achar morto. É um ténue estar em melancolia, porém, o responsável estanque por esse achar-se em equilíbrio, essa virtude de encontrar vantagem tanto na vida, como na morte. Na nossa ignorância, seríamos capazes de tratar esta última como a patologia; como o quebrar de uma afável normalidade, ou o trair de uma velha amiga.
O romantismo desnecessário, ilógico, e inconsequente — esse sorrir perante as coisas, essa fuga do chorar; será esse ataque súbito que nos leva à gargalhada, será esse tremor húmido que nos convence ao riso, o verdadeiro sinal de um sujeito bom, em bem-estar para consigo próprio, em bem-estar para com o mundo?
Nós, habitantes desta Terra, estamos infelizmente longe de tal beatitude do espírito. Essa encontra-se em livros, na Bíblia, ou nos contos de fadas. Quem sabe um dia nos arrisquemos a contemplar o rompante espelho; cortante, sim — como todo o vidro; a que uns arriscam ainda de chamar pelo seu digno nome: essa essência, do que nos é a Humanidade.
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